terça-feira, 19 de abril de 2011

O Poeta dos muitos nomes

Lane Valiengo

         O mundo pessoal do poeta era tão grande, tão extenso e tão denso, que ele criou muitas outras vidas para si mesmo. A intensidade dos seus sentimentos e pensamentos era transbordante, não cabia em apenas uma personalidade. Por isso, Fernando Pessoa, um dos maiores nomes da literatura mundial de todos os tempos, multiplicou a sua existência, para cobrir todas as possibilidades, todas as variáveis, todos os conhecimentos, todas as vivências, todas as experiências

         Heterônimo é o termo que designa as diversas individualidades de um autor literário. Praticamente a palavra foi criada para explicar Pessoa e suas pessoas. O senhor das palavras ganhou uma palavra que o explicasse, ou que tentasse explicar: são várias pessoas que habitam um único poeta. Ao contrário, pseudônimos são vários nomes para a mesma personalidade.

         Heteronímia é o estudo dos heterônimos e o criador do heterônimo é chamado de ortônimo. A lei brasileira protege tanto os pseudônimos quanto os heterônimos.

         Não se contentando em ser só um só Pessoa, criou várias personalidades distintas. Todas com personalidade própria, com estilo literário definido e diferenciado, com biografias próprias. Cada um passou a ser, realmente, uma pessoa completa. Os mais destacados foram Alberto Caieiro, Ricardo Reis e Álvaro Campos.

         Num certo ponto, torna-se até difícil pra quem os lê admitir que eles não eram efetivamente vários, e sim expressões de uma só cabeça. Será mesmo? Pessoa é fruto de uma época com muitas facetas, em que os valores  sociais estavam desabando, diante dos horrores e incertezas da I Guerra Mundial. Para defender a sua sanidade, Pessoa enlouqueceu ligeira e conscientemente e criou personalidades diversas.

         Mais um detalhe importante: seu talento era tão intenso que, efetivamente, não caberia em uma única e limitada personalidade. A facilidade com que conseguia transitar por tantos estilos diferentes só poderia mesmo se manifestar assim, sendo muitos. A busca pela poesia suprema exigia o auxílio de várias pessoas, um esforço conjunto e bem distribuído. Ou seja, cada um seguindo por um caminho.

         Tudo não vale à pena se a alma não for pequena, não é mesmo? Pois bem: o vácuo existência (e artístico) que assolava Pessoa gerou os seus heterônimos. Era na verdade uma necessidade, e não mera excentricidade. E com a vantagem de, assim, conseguir enxergar o mundo sob diferentes pontos de vista, vivenciando as diferentes verdade dos outros. Viver, diria Pessoa, é multiplicar as experiências.
        
         Pois foi assim que o próprio Pessoa explicou os seus heterônimos: “Por qualquer motivo temperamental que me não proponho a analisar, nem importa que analise, contruí dentro de mim várias personagens distintas entre si e de mim, personagens essas a que atribuí poemas vários que não são como eu, nos meus sentimentos e ideais, os escreveria”.
        
         A cada um, Pessoa atribuiu uma formação diferente. Alberto Caieiro, denominado “o mestre”, nasceu em Lisboa em 1885 e morreu em 1915, tuberculoso. Não tinha profissão e vivia de pequenos expedientes. Teria apenas instrução primária e “escrevia mal o português”. Órfão, vivia com uma tia-avó. Era o poeta da natureza e das sensações, tendo a “filosofia de não filosofar”.
        
         Ricardo Reis nasceu no Porto em 18987 e educou-se em colégio de jesuítas. Formou-se em Medicina e estudou as ideias e costumes da Grécia antiga. Monarquista, emigrou para o Brasil após a instalação da república em  Portugal. Era um intelectual lúcido e consciente, “aceitando o caráter efêmero da vida”.

         Álvaro de Campos nasceu em Tavira, em 1890. Formou-se em Engenharia Naval na Escócia e era homem viajado, conhecendo inclusive o Oriente. Dedicou-se à literatura em Lisboa e gostava de intervir em polêmicas literárias e políticas. Defendia o modernismo e o futurismo.

         Fernando Antonio Nogueira Pessoa nasceu em 13 de junho de 1888, em Lisboa e cresceu na África do Sul. Foi empresário, jornalista, tradutor, publicitário e ativista político, entre outras coisas. Morreu de cirrose hepática aos 47 anos., em Lisboa É considerado ao lado de Camões o “legado da língua portuguesa ao mundo”, segundo Harold Bloom.

                                      POEMAS


     Longe de mim em mim existo.
         À parte de quem criou,
         à sombra e o movimento em que consisto.
(Longe de mim em mim existo, Fernando Pessoa).


         Basta pensar em sentir
         Para sentir em pensar
         Meu coração faz sorrir
         Meu coração a chorar
         Depois de parar de andar
         Depois de ficar e ir
         Hei de ser quem vai chegar
         Para ser quem vai partir.
(Basta pensar em sentir, Fernando Pessoa).


         Há metafísica bastante em não pensar em nada.

         O que penso eu do mundo?
         Sei lá o que penso do mundo!
         Se eu adoecesse pensaria nisso.
         .........

         O único sentido íntimo das cousas
         É elas não terem sentido íntimo nenhum.

         (fragmentos de V, de O Guardador de Rebanhos, Alberto Caieiro).


         Pelo Tejo vai-se para o Mundo
         Para além do Tejo há a América
         E a fortuna daqueles que a encontram.
         Ninguém nunca pensou no que para além
         Do rio da minha aldeia.
         (fragmento do poema XX de O Guardador de Rebanhos, Alberto Caieiro).


         Desenlacemos as mãos, porque não valer a pena cansarmo-nos.
         Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
         Mais vale saber passar silenciosamente
         E sem desassossegos grandes.
         (ode sem título, Ricardo Reis).


         À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica
         Tenho febre e escrevo
         Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto
         Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.


         Ó rodas, ó engrenagens r-r-r-r-r eterno!
         Forte espasmo retidos dos maquinismos em fúria!
         Em fúria fora e dentro de mim,
         Por todos os meus nervos dissecados fora,
         Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto”
         Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos
         De vos ouvir demasiadamente de perto,
         E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
         De expressão de todas as minhas sensações,
         Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas (.....)
         Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
         Porque o presente é todo passado e futuro.
         (fragmentos de Ode Triunfal, Álvaro de Campos).


         O poeta é um fingidor.
         Finge tão completamente
         Que chega e fingir que é dor
         A dor que deveras sente.
         (fragmento de Autopsicografia, Fernando Pessoa).

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