terça-feira, 9 de agosto de 2011

O nome da pirataria e o nome do milagre


Lane Valiengo

         Provavelmente Thomas nunca soube o significado do seu nome, que em grego quer dizer "aquele que honra a Deus" (em aramaico, pode significar "gêmeo").

             Seu sobrenome, Cavendish, significa um tipo de tabaco de gosto adocicado. Mas nos tempos iniciais da colonização do litoral brasileiro, Thomas Cavendish era o nome do pirata mais astuto e mais cruel que se poderia enfrentar. Saqueou Santos e São Vicente, queimou as duas vilas, destruiu o Outeiro de Santa Catarina (marco inicial da vida em Santos), incluindo a igrejinha, e o Engenho dos Erasmos.

                Cavendish fez muito mais: ensinou às primeiras gentes o que era ser pirata de verdade, deu exemplos explícitos de crueldade e tortura, instaurou o gosto pela ganância desmedida na iniciante colônia e deu causa ao surgimento de uma lenda, a de que teria enterrado por estas terras um tesouro fabuloso.

                As andanças e matanças de Cavendish pelo litoral paulista provocaram o aparecimento de dois aspectos fundamentais na história de Santos e arredores: o milagre de Nossa Senhora de Monte Serrat e o mito da resistência e da insubmissão.

                Contam os livros que, depois de muito se fartar, o pirata voltou para saquear Santos mais uma vez. Dantes, como sempre, reclamava-se muito da falta de segurança. Era a noite de Natal de 1588 e a população correu para o Morro de São Jerônimo, para se proteger. Lá no alto havia uma capela, com uma imagem de Nossa Senhora do Monte Serrat (de origem francesa). Os piratas resolveram ir atrás e acabar com toda e qualquer alma viva, o que nos tempos de capitalismo selvagem e canibalismo voraz só poderia mesmo ser uma péssima ideia. Se você mata todo mundo, quem você vai roubar amanhã? Mas, dizíamos, os piratas resolveram perseguir a população. Foi aí que houve um grande deslizamento de terra das encostas, soterrando um bom número de piratas e fazendo os restantes deixarem a coisa quieta.

        O milagre foi atribuído à Santa, que se tornou a Padroeira de Santos.

        Mas como nem sempre é possível esperar por milagres de origem geológica (apesar que as tragédias desse tipo acontecem toda hora no Brasil...), a população resolveu se preparar para resistir a Cavendish. Pois é, todos sabiam que ele voltaria no dia de pagamento ou para conseguir uma boa comidinha caseira...

        Ele chegou, cansado e ferido de tantos arrastões, mas a população estava organizada e preparada, fazendo o corsário retroceder, com muitas baixas de piratas de primeira linha. Cavendish fugiu rapidinho e acabou morrendo na viagem de volta à Inglaterra velha de guerra.

        Foi o primeiro movimento organizado de resistência da população santista, uma espécie de treino para tudo o que viria depois, como a luta pela abolição, as várias cassações de autonomia política e administrativa, a perseguição a todos os adversários dos vários governos (havendo, somos contra...), as memoráveis greves portuárias que invariavelmente acabavam em sangue na beira do cais, a luta pelo petróleo é nosso que vitimou Deoclécio Santana, as eleições que elegeriam Roitman e Tarquínio e que foram canceladas, a marcha sobre Brasília para recuperar a autonomia na unha, etc e tal.

        Alguém ainda quer saber o que aconteceu com o inenarrável tesouro de Cavendish? Bem, parece que ele resolveu eliminar os comparsas que sabiam o local em que a fortuna foi enterrada, mas um deles sobreviveu. Dizem as línguas perfeitas que a esposa do sobrevivente teria escutado a história, incluindo as atrocidades do marido, e se confessado ali na igreja mais próxima. Os padres foram mais rápidos do que a elevação de juros no Brasil e confiscaram tudinho.

        Não existe nenhuma comprovação de que foi assim que começou a Receita Federal no Brasil.

        Só para constar: a Santa fez vários outros milagres, incluindo um novo desabamento em 1928. Os piratas daquele momento não foram identificados mas os suspeitos eram muitos. Desconfia-se que seus descendentes hoje usem terno e gravata, com colarinho alto. Os mais modestos da família lavam dinheiro em singelas barraquinhas de DVDs. Em vez de navios, preferem iates. Assim como o patriarca da raça, também enterraram grandes fortunas.

        Só que lá na Suiça.

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