terça-feira, 16 de agosto de 2011

O NOME DE UMA LENDA VIVA DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA: RZEWSKI

Lane Valiengo

             Atenção!

         Este texto é totalmente inédito: é o único registro da presença em Santos de Frederic Anthony Rzewski, um dos principais nomes da música erudita contemporânea, em 1989. Compositor brilhante, magnífico pianista, altamente politizado, preocupado com as questões sociais e dono de um bom humor insuperável. Os temas de suas composições geralmente partem de fatos sócio-históricos, dentro de uma consciência política aprofundada. Um homem do mundo, um intelectual de vanguarda, que veio participar do célebre Festival de Música Nova, criado e organizado pelo santista Gilberto Mendes.
         Esta matéria seria publicada por um grande jornal conservador. Mas os cortes na versão original seriam tantos - e tão absurdos - , que o autor preferiu não publicar coisa alguma. A alegação para a exclusão dos trechos censurados foi a de que o tom era muito político. Mas não eram tempos para ser político? E foi por isso que ninguém ficou sabendo quais eram os pensamentos e os posicionamentos de Rzewski.
         Muita coisa se passou desde então – a conversa com o compositor ACONTECEU quando faltavam alguns meses para Fernando Collor se eleger Presidente do Brasil. Basicamente, contudo, as condições estruturais, culturais e ideológicas não mudaram tanto assim. Basta dizer que o Festival de Música Nova corre, em 2011, o sério risco de não acontecer mais. Nunca mais.
         Chegou o momento de tirar esse peso dos ombros e de dar de ombros diante do jornalismo obtuso.
         Conheça, pois, o grande Rzewski, o nome do gênio.

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1

        Foi acontecendo assim: uma lenda começou a tomar forma assim que subiu ao palco. Lenda feita de música, de ideologia, de humildade. Lenda que tem nome, tem rosto e uma expressão amistosa nos olhos. Além de tênis azuis nos pés. A lenda tem o nome de Frederic Rzewski (pronuncia-se “zhef esqui”), um dos maiores pianistas do mundo, um dos grandes compositores eruditos contemporâneos. Aliás, erudito é um termo pequeno para tamanho talento. Um daqueles raros gênios americanos, descendente de poloneses, que cultivou o bom senso de viver na Europa, mais precisamente na Bélgica.
        Pois essa lenda esteve aqui mesmo em Santos, na noite de 14 de agosto de 1989, uma quinta-feira que ele transformou em pura arte e magia. Era possível sentir que as notas que vinham do piano eram palpáveis, tinham vida própria, de verdade!
        Rzewski veio para tocar no Festival de Música Nova, que o sempre paciente e sempre lutador Gilberto Mendes continua organizando (nota: era a vigésima sétima edição). Rzewski tocou como nunca mas poucos perceberam, poucos ouviram, os tolos.
        A arte unida jamais será vencida...               

2

        Trata-se de um mito da música contemporânea, da música da nossa era, nossos tempos. Da música nova, da música toda. E é um mito também para as cabeças um pouquinho, ao menos, politizadas. Assim como os velhos esquerdistas, tão cientes de suas crenças ideológicas. Ou os humanistas, os pacifistas, os verdadeiros socialistas e outros mais. Poucos, é verdade.
        Rzewski politizou o piano. Junto com outros artistas também conscientes, outros verdadeiros artistas, engajou-se no sonho mais belo e importante que existe, que é o sonho de acreditar que o mundo pode mudar, pelo menos um pouco que seja. Um sonho que habitou a cabeça de muita gente na agitação total dos anos 60.

3

        Mas vamos parar de falar em mitos e lendas. É que esse mito em particular é uma pessoa muito simples e modesta, que não precisa de endeusamentos artificiais. Não, ele nunca será uma estrela (“Of course I’m not a star!) cheia de exigências e mau humor. Não, isso não é com ele. Talvez não passe de um velho hippie aposentado. Ou talvez um anarquista completo, sempre de bom humor. Talvez. Mas certamente é um outsider. Do contrário, não aceitaria vir ao Brasil ganhando um cachê pequeno, concordando com as condições modestas que o festival oferece. E sem reclamar de nada, nadinha, para ele tudo estava sempre okay, okay...
        É bem como comentou o Gilberto Mendes: gente de esquerda é outra coisa...

4

        Este que é um dos grandes pianistas do mundo tocou no Teatro Municipal uma única música, composição sua: 36 Variations on the Sergio Ortega Song “El Pueblo Unido Jamás Será Vencido”, aquele hino popular de milhares de passeatas. Intrigante, muito intrigante...
        As Variações duram nada menos que uma hora. Uma hora inteirinha, um fôlego só, sem parar, sem intervalo algum, só música, só climas e notas se alternando. Uma hora...
        As Variações de Rzewski já ficaram célebres, comparadas em importância, criatividade e virtuosismo às famosas “Variações sobre uma valsa de Diabelli”, de Beethoven. A comparação tem procedência: ambas são imensos desafios pianísticos e estilísticos.

5

        As notas transbordam, contando durante uma horinha toda a história da música ocidental. Ou melhor, recontando a história, destruindo tudo e reconstruindo em seguida. Sob a forma de uma música poderosa, conta-se a história de todos os povos oprimidos da face da terra.
        As Variações têm a sua história própria: foram compostas para o bicentenário da Independência norte americana. Rzewski recebeu a encomenda de um jovem pianista, ao lado de outros duzentos compositores.
        Ele pensou: eis aqui uma boa oportunidade para despertar consciências. A data comemorava a independência de um pequeno país, na época em que se livrava de uma nação poderosa, a Inglaterra. Pois o pequeno país de antes, os Estados Unidos, cresceu muito e em 1976 fazia a mesma coisa, dominando econômica e culturalmente uma pequena nação, o Chile. Inclusive participando ativamente da derrubada do Presidente Salvador Allende e colocando no poder o ditador Pinochet, que tantas desgraças promoveu.
        Rzewski recorda: em Roma, por exemplo, aconteciam manifestações gigantescas de solidariedade ao povo chileno, mais de cem mil italianos nas ruas. Em Nova Iorque, nada, só silêncio. Os jornais não diziam nada, as pessoas ignoravam. "Eu pensei: talvez seja possível alertar as pessoas, através da música. Existem muitas pessoas sensíveis nos Estados Unidos. Talvez seja possível introduzir o problema através das salas de concerto, começar a discutir a questão da democracia no Chile. E aí eu fiz as Variações sobre a música do Ortega, meu amigo particular, um esquerdista de verdade, radical. E foi eficaz, a peça foi escrita diretamente para o público americano de música erudita e as pessoas me procuravam, dizendo que nada sabiam sobre o Chile. E então elas começaram a pensar...".

6

        Constatação pertinente: Sérgio Ortega já tentou levar Rzewski várias vezes ao Chile, em vão. "Não irei enquanto não acabar a ditadura". (nota: a ditadura acabou em 1990).

7

        Outra constatação: Rzewski definitivamente tirou a virgindade do novo piano do Teatro Municipal, um Stenway de 23 mil dólares. O que ele aprontou naquela meia cauda...
(nota necessária: o jornal censurou a palavra virgindade...).

8

        Cena pré-concerto: para evitar qualquer mal entendido, humildemente ele avisa que, depois que terminar sua apresentação, não assistirá à segunda parte (era o Duo Diálogos, de percussão). Preferia ficar ali no bar do teatro, tomando uns drinques. Aviso que ali, uma pequena cantina, não há drinque algum. Cerveja também não, nenhuma bebida alcoólica. Ele reage, fazendo careta: "Molto grave...".
        Condoído, expliquei (ah, esse meu maldito inglês, incompleto e enferrujado...) que do outro lado da rua, ali na Pinheiro Machado mesmo, atravessando o canal, havia um bar.
        O rosto largo de descendente de poloneses virou um sorriso só. O aviso foi definitivo: "É ali que estarei...".

9

        Cena pós-concerto: ali naquela cantina que não servia drinque algum, o grande pianista brinca, apontando para a garrafa de Coca-Cola nas mãos do Secretário de Cultura, Reinaldo Martins, como se dissesse: "que bonito, não??? Ele ri e diz "Beba Coca-Cola, sim...". Trata-se de uma referência à célebre peça composta por Gilberto Mendes, exatamente a "Beba Coca-Cola".
        Minutos depois, é o próprio Rzewski que está com uma Coca nas mãos, geladinha. "Ah ah!", acuso. Ele balança os ombros antes de ironizar: "Like monkays... Gilberto mandou, a gente bebe... Como se fala monkays aqui? Macacos? É, como macacos...".

10

        Para conversar e se fazer entender, ele vai inventando na hora (graças a Deus!) um rápido dialeto que mistura palavras e expressões em inglês, italiano, espanhol e até português, com a preciosa ajuda de um pequeno dicionário de bolso, capa amarela, português-inglês. E assim vamos nos entendendo.
        "Em one month... como é month? Mês? Em um mês eu conseguiria aprender português. Mas só quatro dias não dá...
        Não dá mesmo. Mas o que importa?

11

        Cena pós-Variações: impressionado com a performance de Rzewski, um estudante de música se aproxima e pergunta: quantas horas por dia você estuda?
        Ah, pra que?
        A reação é séria, sem deixar de ser também hilariante: "Estudar? Não estudo nada. Se possível, procuro tocar sem estudar... Não amo estudar, tento estudar o mínimo possível, é a atividade mais estúpida que existe...".
        Ele move as mãos, vive e representa o que fala, mexe o corpo todo. Um pianista com expressão corporal impecável. "Não é uma virtude isso de trabalhar, trabalhar, trabalhar... Isso é um pensamento religioso protestante muito idiota, é repressão... Virtude é uma palavra masculina, vem do latim, nossa cultura é toda baseada nesse machismo besta... Basta! Agora, precisamos trazer as qualidades femininas para a cultura, a suavidade, a beleza... Trabalho demasiado, produção, produção, isso é repressão! No! Chega!".

12

        Uma cena muito particular: lá está um dos maiores pianistas do mundo atravessando a pontezinha do Canal 1, indo para o Bar Lanus, barzinho de quinta categoria, porém muito animado. Provavelmente, a presença de Rzewski foi o momento mais glorioso de toda a existência do Lanus...
        Quem se importa?
        A mesma glória que sentiu um repórter maravilhado, pronto para a conversa-dialeto.

13

        Rzewski, o polêmico, vai falar sobre música, entre uma cerveja e mais outra cerveja: "Gosto de New Music, Música Nova. Ela é a continuidade da música clássica, é a música de hoje. Os grandes compositores do passado estão mortos, por isso é que devemos tocar a música de hoje. Isso de ficar tocando música de quem já morreu há cem, duzentos anos, não é tradição, é aberração!".
        Atenção, senhores, quem falou isso foi um dos maiores intérpretes de Beethoven dos tempos modernos...

14

        Tem mais: "Mas eu gosto também de jazz, música africana, Fela Kuti. Gosto de música country, de rock... eu gosto do Sting... Em São Paulo fui ver o Cecil Taylor tocar, o free jazz dele eu gosto bastante. O que eu não gosto é de música séria. Quanto mais séria ela é, mais cômica ela fica, Não pode ser séria...
        "Concerto sinfônico eu não gosto, é uma cultura de intimidação, o chefão lá na frente da orquestra, mandando, essa coisa Van Karajan... O ditador na frente, mandando, não gosto mesmo".
        E o copo esvazia, enche, esvazia, enche... seis cervejas em apenas quarenta minutos...

15

        É hora da pergunta crucial: você é um homem de esquerda mesmo, não?
        Antes de responder com palavras, balança os ombros, faz que sim com a cabeça várias vezes. "Sim, naturalmente. Não compreendo porque é uma coisa que chama a atenção, um compositor que faz músicas políticas, apontam na rua, acusam, é comunista, comunista! Ora, para mim é uma coisa normal! Todos os escritores falam de política, por que não os músicos?
        "Não é uma coisa abstrata, é natural falar de vida, de muerte, de amor e... de política!".
        E sobre nós, pobres mortais abaixo do equador?
        "Não sei nada sobre a política no Brasil, estou tentando entender", diz, para em seguida rir gostosamente. "Sei que vocês terão eleições em novembro e que um senhor Collor é o favorito, não? Mas parece que este senhor não é muito colorido, não?"
        Quando explico que Collor é o representante do poder econômico e das forças reacionárias, Rzewski não se surpreende: "Sim, naturalmente, é claro...".
        No rosto, aquela compreensão de que as coisas não mudam assim tão fácil. E que o poder econômico age igual em todo o mundo, só muda o nome da moeda e o tamanho da ganância.
(nota: todo este trecho também foi censurado...).

16

        Senhores e Senhoras, agora vamos respeitosamente às impressões de um turista ocasional mas muito atento: "O que vi difere muito da expectativa que eu tinha. Esperava um País pobre, estou surpreso, encontrei um País rico! Não esperava ver estes grandes shoppings centers. Sabia das favelas mas não da riqueza que também há. Estou molto impressionato!"

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        Nos detalhes, Rzewski mostra como aos poucos vai entendendo o Brasil, a partir de observações simples: "Esperava ver mais gente fumando charutos nas ruas. Adoro charutos. Mas não há, foi uma surpresa. Comprei charutos de manhã, em Salvador, mas são muito caros, NCZ$ 55,55 (nota: cruzados novos...) por uma caixa com dez, very expensive! Eu compro charutos brasileiros na Europa bem mais barato! Eu não entendo isso... O café também, o café brasileiro exportado para a Europa é mais barato lá do que aqui! E o sabor é muito melhor do que esse que vocês bebem aqui...".
        Eis aqui a demonstração prática de como um famoso pianista entendeu o que é viver no terceiro Mundo e ser vítima da exploração econômica nos próprios produtos que fabricamos...
        Rzewski não deixa de observar: "Mas aqui é o país da Volkswagen...".

18

        Rzewski nasceu em 13 de abril de 1938, em Massachusetts. Mora em Bruxelas, num pequeno apartamento equipado com um piano japonês Kawai. Vive entre a América e a Europa. Vive com Françoise, atriz de teatro belga. E tem filhos com outra belga, que mora em Roma.
        Conheceu o santista Gilberto Mendes pessoalmente em 1986, no Festival de Patras, Grécia. Mas já conhecia, e bem, as peças do nosso compositor de cabelos brancos. "Gilberto é uma pessoa muito simpática, muito simples, but...". Ele bate o dedo indicador na cabeça, indicando: Gilberto tem cabeça, muita capacidade...

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        Rzewski só não se entendeu mesmo foi com a nossa moeda: "Como é que pode um simples cafezinho custar 650 mil? Sim, eu sei que é preciso cortar os zeros, intelectualmente até entendo. Mas na hora de pagar, me atrapalho todo, é muita confusão...".


20

        Cidades: gosta de Tokio, Moscou, Nova Iorque, grandes metrópoles, pode-se conhecer muita gente nas grandes metrópoles, diferentes tipos de pessoas. Achou São Paulo muito parecida com Nova Iorque. Mas admite: as grandes metrópoles não são boas para se viver durante muito tempo.
        Não conhece Santos, ficou aqui apenas uma noite, nem viu o mar. Mas sentiu que as pessoas são mais abertas e alegres do que os paulistanos (nosso ego respeitosamente agradece...).

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        Considerações finais: a cerveja brasileira não é bad, mas não se compara à belga, "a melhor do mundo". Queria porque queria provar a comida brasileira, até aprendeu a soletrar, "feijoada...". Mas se contentou com um viradinho à paulista ali mesmo no Almeida velho de guerra.
        Gostou e repetiu.
        Pronto, a lenda foi embora, foi tocar em outros lugares, conhecer outras pessoas, fabricar novas músicas, falar de política. E de charutos. Saibam todos que aquela quinta-feira foi única e talvez nunca haja outra igual: foi uma das maiores e mais importantes apresentações de música acontecidas em Santos, em todos os tempos.
        E lembrem-se: a arte unida jamais será vencida. Foi Rzewski quem garantiu...

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